BEYONCÉ E O AFROFUTURISMO PRÁTICO
- viniciusvba
- 4 de ago.
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Atualizado: há 5 dias

A imagem da artista que definiu as regras da indústria POP contemporânea, com chapéu, botas, franjas e outras referências country em seu último disco COWBOY CARTER, certamente surpreendeu muita gente. Mais do que uma homenagem às raízes texanas, o nono álbum de Beyoncé representa um grande passo dentro da estratégia cultural que coloca em prática um dos maiores conceitos artísticos do movimento negro: o afrofuturismo.
Segundo a Academia Brasileira de Letras, o afrofuturismo é um movimento cultural, estético e político que se manifesta no campo da literatura, cinema, fotografia, moda, arte e música, a partir da perspectiva negra, e utiliza elementos da ficção científica e da fantasia para criar narrativas de protagonismo negro, por meio da celebração da identidade, ancestralidade e história.
Em geral, obras pertencentes a esse movimento procuram retratar um futuro grandioso, caracterizado tanto pela tecnologia avançada quanto pela superação das condições determinadas pela opressão racial, dentro do contexto da vivência africana e diaspórica.
Provocações como: “E se não houvesse escravidão?”, “E se não houvesse a demonização das religiões de matriz africana?”, “E se não houvesse o apagamento do pensamento filosófico, artístico e estético negro?” nos fazem refletir: onde estaríamos?
Conforme a definição da Academia, é muito comum que obras desse movimento usem alegorias de ficção científica e fantasia para ilustrar esses cenários, como é o caso da mitologia que inspirou o fenômeno cultural Pantera Negra (2018), obra mais conhecida do movimento.
Mas e se o afrofuturismo ultrapassasse a teoria e a imaginação? E se fosse possível recuperar o pensamento, a identidade e, acima de tudo, o pertencimento de criações negras que foram saqueadas e alteradas pela história? Para Beyoncé, tudo isso já é uma realidade.

O Álbum do Ano marca a segunda fase de um ambicioso projeto de três atos, dedicado ao resgate de gêneros musicais criados por pessoas negras e posteriormente embranquecidos pela indústria.
O primeiro ato, RENAISSANCE (2022), celebrou o house e a dance music das pistas LGBTQIAPN+ e dos subúrbios negros. Já a terceira fase, ainda não lançada, é amplamente aguardada como uma ode ao rock'n'roll, gênero profundamente enraizado na história negra, mas frequentemente apropriado pela indústria. E os frutos desse movimento já começaram a surgir: Lizzo, por exemplo, incorporou essas referências em seus últimos lançamentos, como Love in Real Life (2025), evocando a força de ícones negros do rock como Prince e Jimi Hendrix.
É notável que o country seja a fase mais importante do projeto para a artista, já que o gênero se conecta diretamente com suas raízes e a história de sua família. Beyoncé começou a explorar essa sonoridade ainda na era Lemonade, com a faixa “Daddy Lessons”, e deu seu primeiro passo em direção a um projeto exclusivamente country em 2021, ao lançar, à frente da IVY PARK, uma coleção que celebra a estética western dentro do recorte do streetwear que também foi criado e popularizado por jovens e artistas negros.

Com COWBOY CARTER, Beyoncé desafia e ressignifica a narrativa dominante, reivindicando o lugar da negritude na formação da música country e, mais amplamente, na identidade cultural estadunidense. Ao fazer isso, ela reinventa o passado, projeta o futuro e reafirma o protagonismo negro em todos os espaços.
Mas talvez um dos gestos mais poderosos de COWBOY CARTER esteja em como Beyoncé carrega com ela outros artistas negros que foram historicamente invisibilizados dentro do gênero.
Ao dividir o microfone com nomes como Tanner Adell, Brittney Spencer, Tiera Kennedy, Reyna Roberts e Shaboozey, ela não só amplia a discussão, como muda concretamente os rumos dessas carreiras.
A faixa "BLACKBIIRD", por exemplo, reúne as vozes de mulheres negras que raramente têm espaço nas rádios country dos EUA. Após o lançamento do álbum, todas elas estrearam na Billboard Hot 100 pela primeira vez na carreira, com um aumento impressionante de ouvintes no Spotify: Brittney Spencer cresceu 170%, Tanner Adell 125%, Reyna Roberts 125% e Tiera Kennedy 110%. Esses números refletem não só o alcance de Beyoncé, mas também a potência coletiva que se forma quando o protagonismo negro é centralizado com propósito.

Shaboozey também viu sua carreira explodir após colaborar com Beyoncé nas faixas "Spaghetti" e "Sweet Honey Buckin’". Seu single "A Bar Song (Tipsy)" não só alcançou o topo da Billboard Hot 100, como também se manteve impressionantes 14 semanas nas paradas Hot Country Songs e Hot 100 nos Estados Unidos.
Esse sucesso consolidou Shaboozey como um dos artistas mais evidentes no gênero, desafiando expectativas e mostrando que a fusão do country com o rap e o soul não é apenas viável, mas essencial para o futuro do gênero.
Esses dados reforçam que Beyoncé não está apenas fazendo "colaborações"; ela está transformando realidades, abrindo portas e oferecendo holofotes para outros brilharem em nome de um movimento de revisão histórica.

Além disso, Beyoncé convidou para participar do álbum a pioneira Linda Martell que foi uma das primeiras mulheres negras a gravar um disco country nos anos 60, mas acabou sendo apagada da história oficial do gênero. Sua inclusão no projeto restitui seu lugar de direito como uma das fundadoras da tradição country. Posteriormente, em um gesto público de gratidão e reparação, Beyoncé fez questão de agradecer Martell em seu discurso ao conquistar o Grammy de Álbum do Ano, sendo ela a única artista mencionada por nome.

“You are the visuals”
A revolução orquestrada por Beyoncé com Cowboy Carter não se limita à música, mas reverbera também na moda, criando um movimento de resgate e valorização dos signos negros country.
Essa tendência foi observada também no mundo da alta-costura, com o desfile da Louis Vuitton comandado por Pharrell Williams, que estreou como diretor criativo da grife em 2023. A coleção, que se inspirou nas referências do oeste americano, trouxe à tona o country e o western sob uma ótica profundamente negra.
No desfile de Pharrell, chapéus de cowboy, botas e franjas foram reinterpretados com sofisticação ao som de uma trilha sonora que misturava hip-hop, soul e ritmos tradicionais americanos, unindo o streetwear com o luxo da alta-costura, conforme proposto pela IVY PARK ainda em 2021.

Em um movimento paralelo, a Dsquared2 também trouxe essas influências para a passarela na FW25 em Milão, Itália. O desfile, que começou com a performance de Doechii, uma artista que, antes de alcançar o estrelato, foi convidada pessoalmente por Beyoncé para abrir um dos shows da Renaissance Tour, a influência foi notada em elementos como jaquetas de couro, chapéus de cowboy estilizados e botas de caubói, todos acompanhados de toques modernos e urbanos.

Em um contexto pós-Cowboy Carter, a presença de signos negros country não é mais uma novidade, mas uma reafirmação de que a verdadeira história da música não pode ser contada sem incluir a contribuição fundamental da negritude.
O Afrofuturismo prático exercido pela maior artista viva é exatamente isso: reverenciar aqueles que abriram portas para nós, carregar novos nomes para espaços excludentes e apontar para um futuro brilhante onde nossa cultura e presença nunca mais serão negadas.
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