O CONSERVADORISMO POR TRÁS DA NOSTALGIA NOS BLOCKBUSTERS
- viniciusvba
- 4 de ago.
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Atualizado: há 4 dias

De tempos em tempos, a indústria do cinema parece querer reconectar o público com o passado. Michael Keaton como Batman, Tobey Maguire e Andrew Garfield retornando como Homem-Aranha ou Patrick Stewart reprisando o papel de Professor Xavier. Para muita gente, essas cenas soam como um grande presente aos fãs. Mas, na prática, elas dizem mais sobre a estrutura conservadora da cultura pop do que sobre um desejo genuíno de homenagear personagens antigos.
Por trás do argumento da nostalgia, existe uma escolha estratégica e, em certa medida, política da indústria: manter viva a imagem do herói clássico, aquele que já se provou eficaz nas bilheterias, mesmo quando o público demonstra interesse por novas histórias e representações.
Esse movimento se evidencia de forma ainda mais marcante no Universo Cinematográfico Marvel (MCU), que parece agora refém de uma batalha maior do que qualquer confronto entre heróis: as guerras culturais que dominam a sociedade estadunidense. A confirmação do elenco retrogrado de Vingadores: Doomsday revela muito mais do que um simples crossover de franquias.
Ao reunir 27 personagens, incluindo Robert Downey Jr., agora interpretando o Doutor Destino e James Mardsen, Patrick Steawrt e Ian Mckellen retornando dos X-Men clássicos, a Marvel não está apenas fazendo uma homenagem ao passado. Na prática, reforça um movimento que busca resgatar o imaginário de antes de suas apostas em diversidade e renovação narrativa.

Se no fim dos anos 2010 a Marvel foi sinônimo de inclusão, com filmes como Pantera Negra, Capitã Marvel, Shang-Chi e a ascensão tardia e desastrosa de Anthony Mackie como Capitão América, o cenário atual caminha em direção contrária. Mesmo trazendo de volta nomes diversos, o estúdio radicaliza o retorno de ícones nostálgicos dos anos 2000. A presença de Patrick Steawrt como Professor Xavier pela segunda vez em menos de 3 anos, por exemplo, simboliza mais do que a volta de um personagem querido: resgata uma era em que os filmes da POP eram dominados majoritariamente por um padrão excludente e nenhum artista contemporâneo seria capacitado o suficiente para encarnar o líder da equipe mais diversa dos quadrinhos.
Esse retrocesso não acontece isoladamente. Desde a ascensão de Donald Trump e a consolidação do slogan "Make America Great Again", Hollywood e sobretudo, a Disney, tem recuado em projetos mais progressistas com protagonistas não-brancos, LGBTQIA+ ou com roteiros mais arrojados foram canceladas ou severamente modificadas como Capitão América: Admirável Mundo Novo, Red: Crescer é uma Fera e o seriado Ganhar ou Perder.
No caso da Marvel, esse reflexo é claro: Vingadores: Doomsday reunirá não só personagens das fases anteriores do MCU, mas também os X-Men da Fox, diretamente dos anos 2000, com estética, elenco e tons que marcaram aquela época. Isso não apenas acalma um público que rejeita o progressismo das telas, como limita que novas gerações de atores e narrativas consigam reconfigurar o imaginário popular.

O receio de que novos X-Men ganhassem uma roupagem mais inclusiva e contemporânea parece ter sido respondido com a ressurreição das versões anteriores, Vingadores: Doomsday se apresenta como um ponto de inflexão para o MCU. Diante das pressões políticas e do clima hostil à diversidade nos Estados Unidos, a Marvel parece preferir revisitar o passado a arriscar futuros mais plurais.
“Na minha época era melhor”
Quando grandes franquias apostam na volta desses personagens antigos, o recado é claro: o herói de verdade, o que importa, ainda é o mesmo de 20, 30 ou 40 anos atrás. Essa escolha não é só comercial. Ela também tem impacto simbólico.
O resultado é que novas representações como heróis negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, personagens asiáticos ou indígenas acabam sempre sendo apresentadas como complementos ou alternativas, nunca como o centro legítimo das grandes sagas, e apesar da justificativa comercial, a obra e as novas gerações são os que mais perdem com esse direcional.
A nostalgia, nesse caso, tem um peso que vai além do emocional. Ela funciona como uma âncora que impede a renovação. Quando, em vez de assumir novos rumos, a indústria se apoia nas mesmas fórmulas, acaba alimentando uma ideia conservadora de mundo: a de que o “melhor” já aconteceu e deve ser preservado a qualquer custo.

O medo de renovar é, em parte, reflexo do receio de desagradar uma parcela do público que defende a manutenção de um velho padrão, um padrão que a cultura pop ajudou a consolidar.
Entre os anos 70 e 80, com a ascensão de governos conservadores pelo mundo como Ronald Reagan nos Estados Unidos, Margaret Thatcher no Reino Unido e o regime ditatorial militar no Brasil, vimos se fortalecer o perfil do herói clássico: masculino, branco, heterossexual, armamentista e solitário. Era o tempo de Superman (1978) com Christopher Reeve; Batman (1989) de Tim Burton com Michael Keaton; Rambo (1982) com Sylvester Stallone; e O Exterminador do Futuro (1984) com Arnold Schwarzenegger.
Esses personagens não eram apenas produtos de entretenimento, mas materializações do ideal falso e superficial de força, controle e moralidade que governos de direita vendiam como solução para a instabilidade política, econômica e social da época. Não por acaso, as narrativas frequentemente mostravam o herói defendendo o "American Way of Life" ou enfrentando o crime nas metáforas urbanas decadentes de cidades como Gotham.
Nos últimos anos, o contexto de polarização e o avanço de pautas conservadoras em diversas partes do mundo parecem ter influenciado novamente a cultura pop. A ascensão dos super-heróis nos anos 80 já havia coincidido com o fortalecimento desses discursos e agora, de forma semelhante, o receio de inovar revela um medo velado: o de contrariar um público fiel ao velho imaginário, ainda resistente às mudanças que os novos tempos pedem.

Apesar desse cenário conservador, há exceções que mostram o potencial da renovação tanto comercial quanto cultural. Homem-Aranha no Aranhaverso (2018) é um exemplo emblemático: um sucesso mundial que revolucionou a estética dos filmes de animação na década de 2020 e colocou no centro da narrativa um jovem negro e latino como protagonista, sem depender da aprovação ou da validação de Peters anteriores.
O filme, vencedor do Oscar e primeiro capítulo de uma trilogia que se encerra ainda este ano, expandiu como nunca a mitologia do Homem-Aranha. E tudo isso foi possível apenas ao deslocar o foco do protagonismo. A vivência de Miles Morales tornou o novo Homem-Aranha mais humano, mais atual e principalmente muito mais relevante para uma nova geração de fãs.

Já Mad Max: Estrada da Fúria (2015) virou referência ao colocar Furiosa, uma personagem cativante inédita, no centro de uma franquia referência em masculinidade. E Everything Everywhere All At Once (2022) conquistou a temporada de premiações com uma protagonista mulher, asiática, de meia-idade, sem qualquer conexão com fórmulas tradicionais de heroísmo.
É importante lembrar que essa discussão sobre diversidade nas grandes narrativas de fantasia não começou agora. Nos anos 70, The Wiz, uma releitura negra de O Mágico de Oz, já propunha uma ruptura. Baseado no musical da Broadway, o filme trouxe os lendários Diana Ross como Dorothy e Michael Jackson como o Espantalho, recriando a jornada pela Terra de Oz com códigos visuais e sonoros afro-americanos, em um cenário urbano que refletia diretamente a experiência negra nos EUA. A escolha do elenco não era apenas estética, mas política: The Wiz afirmava que outras culturas também podem ocupar o centro do imaginário popular.
Essa reinvenção expandiu a mitologia de Oz para além da fantasia branca tradicional. Em vez do Kansas rural bucólico, The Wiz nos entrega uma metrópole vibrante, cheia de elementos da cultura negra que refletiu e criou tendências dentro da música, moda e dança.

O encontro entre Michael Jackson e Quincy Jones nos bastidores, por exemplo, foi o início de uma parceria que redefiniria a história da música pop mundial. A química entre os dois, nascida nos sets de filmagem de uma fantasia negra, se desdobraria em álbuns icônicos como Off the Wall, Thriller e Bad, provando que o cruzamento entre narrativa negra e cultura de massa tinha poder de transformar não só a obra em revisão.
Atualmente, essa mesma potência reaparece na escolha de Cynthia Erivo como Elphaba nas adaptações cinematográficas de Wicked. A caracterização com microtranças no papel da bruxa "má" do Oeste não é só um gesto estético, mas uma declaração sobre pertencimento e complexidade dentro do subtexto poderoso de uma personagem que não se sente acolhida pela cor de sua pele.
“Superwoke”

Existe ainda as reformas um pouco mais complexa que também merecem ser valorizadas. Atraves do comando de James Gun, o universo cinematográfico da DC Comics ressurge com otimismo e pautas politicas pertinentes ao nosso tempo, o Super homem (2025) ainda que interpretado por um homem branco, escancara o personagem como imigrante ilegal e vilaniza as movimentações da extrema direita com um Lex Luttor que até poderia ser caricato se não vivêssemos em um mundo de Elon Musk e Donald Trump.
Gun também entrega tempo de tela e motivação de personagens bem construídas para mulheres, negros e latinos que de forma carismática conseguem se alavancar em novas narrativas dentro do longa dedicado ao maior super-herói de todos os tempos. Imagino por exemplo a reação de crianças negras se deperando com uma grande cena de ação perfeitamente coeagrafada do senhor incrível, interpratdo pelo ator Edi Gathegi.

E de forma brilhante, Gun parece ter previsto a reação de grupos conservadores a sua ode ao otimismo e humanidade, inserindo os macacos do lex luttor que bombeiam as redes sociais com ódio ao azulzão. Na vida real, os grupos de extrema diretia apelidaram a obra de superwoke e tentam de maneira fracassada boicotar o longa que já acumula mais de 550 milhões de dólares pelo mundo.
Portanto, o cinema blockbuster, como uma das mais potentes ferramentas de construção simbólica em massa, exerce um papel central na forma como enxergamos o bem, o poder, a justiça e o próprio futuro. Comemorar o retorno dos heróis da nossa infância pode parecer inofensivo, mas também significa, em muitos casos, reafirmar um modelo limitado de quem pode protagonizar esses mitos.
Diversificar o elenco não é apenas uma tentativa de “ser atual”, é uma disputa concreta e política por imaginação coletiva, por narrativas que moldam o imaginário popular e, consequentemente, o mundo que projetamos adiante.
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